Personagens e Apoio
2° Ato
Uma ilha tropical na Baía de Guanabara, Rio de Janeiro. Durante o ato, pássaros assoviam exoticamente nas árvores brutais. Sons de motor. O mar. Na praia ao lado, um avião em repouso. Barraca. Guarda-sóis. Um mastro com a bandeira americana. Palmeiras. A cena representa um terraço. A abertura de uma escada ao fundo em comunicação com a areia. Platibanda cor-de-aço com cactus verdes e coloridos em vasos negros. Móveis mecânicos. Bebidas e gelo. Uma rede do Amazonas. Um rádio. Os personagens se vestem pela mais furiosa fantasia burguesa e equatorial. Morenas seminuas. Homens esportivos. Hermafroditas, menopausas.
Com o pano fechado, ouve-se um toque vivo de corneta. A cena conserva-se vazia um instante. Escuta-se o motor de uma lancha que se aproxima.
Pela escada, ao fundo, surgem primeiramente, em franca camaradagem sexual, Heloísa e o Americano. Saem pela direita. Depois, Totó Fruta-do-Conde, tétrico. Sai. Em seguida, D. Poloca e João dos Divãs. Saem. Depois, o velho coronel Belarmino, fumando um mata-rato de palha e vestido rigorosamente de golfe. Sai. Segue-se-lhe um par cheio de vida: D. Cesarina, abanando um leque enorme de plumas em maiô de Copacabana e Abelardo I com calças cor-de-ovo e camiseta esportiva. Permanecem em cena.
ABELARDO I E D. CESARINA.
ABELARDO I — Pronto! Arribamos. (Deposita-a na rede.) É uma lancha que chega. Deve ser o seu filho, o Perdigoto. Na Europa é assim. Toca-se sempre corneta quando chega uma lancha! A bandeira americana é uma homenagem. Indica almirante a bordo! O Americano nosso hóspede...
D. CESARINA — Pois é. Eu disse para o Belarmino. Nunca na minha vida tomei um sorvete daqueles! Uma delícia! Só mesmo um futuro genro distinto e rico como o senhor havia de me oferecer um sorvete daqueles. Como é que se chama?
ABELARDO I — É Banana Real!
D. CESARINA — O Totó é que se lambeu! Coitado! Está num desgosto...
ABELARDO I — É verdade! O Totó está de asa partida! Mas endireita, tomando Banana Real!
D. CESARINA — Também. Quebrar uma amizade de três anos. Eram como dois irmãos... Ele e o Godofredo viviam no mesmo quarto. Por essas e por outras é que eu não gosto de me iludir. Os seus galanteios...
ABELARDO I — Os meus galanteios são sinceros... senhora minha futura sogra... Quem manda se vestir assim, com esse maiô jararaca! Qual é o santo que resiste? Olhe, é sério, sério demais!
D. CESARINA — Quer me deixar mais zangada ainda... Mais triste do que ontem. Continua a proceder mal?
ABELARDO I — Mas D. Cesarina! Me acredite! Por favor!
D. CESARINA — Mentiroso!
ABELARDO I — Eu terei culpa por acaso de ser fraco? Culpa de sentir.
D. CESARINA — Não é isso...
ABELARDO I — Mas que é então...
D. CESARINA — Tenho um pressentimento... O medo de não ser compreendida!
ABELARDO I — Mas que tem! Por que não sorri mais e exala esse perfume de rosas murchas? Banca um cemitério entre ciprestes!...
D. CESARINA — É para onde eu acabo indo por sua causa...
ABELARDO I — Dou a César o que é de César. Ou melhor, a Cesarina o que é de Cesarina...
D. CESARINA — O senhor está é fazendo fita! Me diga uma coisa só. Por que é que o senhor mente tanto, hein? E me atenta tanto!
ABELARDO I — Juro!
D. CESARINA — O senhor sabe que eu não posso beber champagne. Outra noite, quando dançamos aquele foxtrote, me pôs na chuva, depois começou com aquelas graças e aquela imoralidade. O senhor não sabe que Deus não quer que a gente diga as coisas que não sente? Que é pecado mortal cobiçar a mulher do próximo? Vai pro inferno...
ABELARDO I — Não. Eu já sei que vou pro purgatório...
D. CESARINA — A gente nunca deve dizer o que não sente. É horrível ser enganada!
ABELARDO I — E se fosse verdade! Se o meu coração se tivesse inflamado ao contágio do seu luminoso verão?
D. CESARINA — Ora, só eu sei a idade que tenho!
ABELARDO I — Meu Vesúvio!
D. CESARINA (Rindo e ameaçando.) — Olhe, que eu ainda acendo...
MAIS TOTÓ.
TOTÓ FRUTA-DO-CONDE (Aparece à direita, com uma vara de pescar e um saco de bombons na mão, absorto e pesaroso.) — Eu sou uma fracassada!
D. CESARINA — Meu filhinho, venha cá. Benzinho do meu coração!
TOTÓ — Não quero. (Bale o pé.) Não quero. Me deixe!
D. CESARINA — Mas venha aqui, Totó. Venha conversar com sua mãezinha! Há quanto tempo você não me beija?
TOTÓ — Não quero, não quero, não quero!
D. CESARINA — O que que você vai fazer?
TOTÓ — Não está vendo? Pescar nos penhascos. É o meu destino!
ABELARDO I — Cuidado com essa praia! Tem cada bagre!
TOTÓ — Deus o ouça! (Aproxima-se e faz festas.) Meu futuro irmão. Que boas cores! Que idade o senhor tem, hein? Sabe qual é a luva da moda? Eu agora vou dar bombons aos bagres. É servido?
ABELARDO I — Eh! Obrigado, amigo! Não gosto desses peixes, não. Nem de bombons! Mas que família!
D. CESARINA — Me dê um beijinho, Totó!
TOTÓ (Indo pela escada do fundo.) — Não dou! Não dou! Não dou!
MENOS TOTÓ.
D. CESARINA — Ah! Coitado. Depois que ele brigou com o Godofredo está outro... Magro. Enfastiado...
ABELARDO I — Compreendo. Essas rupturas são dolorosas... (Tomando o leque sobre a mesa.) Mas que lindo leque...
D. CESARINA (Silêncio. Retoma o leque. Cena muda.) — Me dê o leque que guarda como um cofre as suas palavras ardentes... do baile...
ABELARDO I — Que guarda a mais terrível e secreta das confissões...
D. CESARINA — Me diga uma coisa, Seu Abelardo, o senhor não tem ciúmes?
ABELARDO I (Surpreso.) — Ora essa!
D. CESARINA — Aquele alemão!
ABELARDO I — Alemão? Americano. Americano e banqueiro!
D. CESARINA — Ele anda com uns brinquedos brutos com a Heloísa!
ABELARDO I — Ah! É boxe. Ela está aprendendo a jogar boxe. De vez em quando uns golpes de luta livre... Ele é campeão de tudo isso em New York, Wall Street!
D. CESARINA — Pois olhe, Seu Abelardo. Eu ficaria roída se alguém que eu amasse tivesse aquelas liberdades com um estranho.
ABELARDO I — Mas D. Cesarina! Eu me prezo de ser um homem da minha época! A senhora quer que eu perca tempo em ter ciúmes? (Imita dramaticamente um casal em choque.) Diga, Heloísa! Quem era aquele homem? — Eu fui lá só para dar um recado. — Baste lá! Confessas! Entraste naquela casa, naquele antro! Traíste-me, perjura! — Ah! Meu amor, que desconfiança também, que injustiça! Um homem feio daquele! Eu fui lá só por causa do recado! — Maldita! Pum! Pum! (Ri) Oh! Oh! ah! É isso? Essa ridicularia que divertiu e ensangüentou gerações de idiotas. É isso... O ciúme!
D. CESARINA (Levantando-se.) — Pois se o senhor não tem vergonha. Seu Abelardo, eu tenho! Olhe este leque! Este leque ainda é capaz de fazer muito estrago! (Deixa a rede.)
ABELARDO I — Compreendo! E o leque de Lady Windermere!
D. CESARINA — Seu Abelardo, não me olhe assim! Eu sou ligada pelo mais doce dos sacramentos ao mais digno dos esposos. Não! Nunca! A vida de uma esposa tem que ser uma renúncia, um sacrifício, uma purificação! Por mais dolorosa...
MAIS D. POLOCA.
D. POLOCA (Surgindo na escada.) — Aí hein? Que lindo par...
D. CESARINA — Com licença. Eu vou fazer servir os rabigalos.
ABELARDO I — Rabigalos?
D. CESARINA — É a tradução de cocktail, feita pela Academia de Letras! (Sai.)
MENOS D. CESARINA.
D. POLOCA (Aproxima-se.) — Dando em cima da sogra!
ABELARDO I — Que é isso, D. Poloca? Bancando a polícia especial?
D. POLOCA — Ouvi tudo!
ABELARDO I — Pois ouviu mal. Eu estava muito respeitosamente explicando à senhora minha futura mãe que somos de duas gerações diferentes. Ela é uma personagem do gracioso Wilde. Eu sou um personagem de Freud!
D. POLOCA — Quê?
ABELARDO I — A senhora não conhece Freud? O último grande romancista da burguesia?
D. POLOCA — O senhor me empresta os romances dele? São inocentes?
ABELARDO I — Oh! São. Não conhece O Complexo de Édipo? É o meu caso!
D. POLOCA — E eu Seu Abelardo? Sou personagem de quem?
ABELARDO I — A senhora é colaboração, Castilho e Lamartine... Babo! (Cantarolando.) Aí! Hein! Pensa que eu não sei?
D. POLOCA (Indignada.) — Pois o senhor é aquele cavalheiro dos Sinos de Corneville!
ABELARDO I — Acertou! Por que é que a senhora há de ser tão simpática quando estamos a sós. E tão infame na frente dos outros?
D. POLOCA — Mas como é que o senhor quer que eu proceda em sociedade?
ABELARDO I — Quero que proceda humanamente.
D. POLOCA — Desde quando que a humanidade é um pedaço de marmelada, Seu Abelardo? Eu defendo o meu ponto de vista de tradição e de família? Intransigentemente. Sou sua melhor amiga (Carinhosa.) em segredo. Mas não posso dar confiança em público a um novo-rico, a um arrivista, a um Rei da Vela!
ABELARDO I — E se eu a fizesse a Rainha do Castiçal?
D. POLOCA — Prefiro ser a neta da Baronesa de Pau-Ferro. A neta pobre e inválida que sempre viveu do pão dos irmãos e cujo resto de família foi salvo por um... intruso!
ABELARDO I — Por um intruso...
D. POLOCA — Que nos tira da ruína mas tem que conhecer as diferenças sociais que nos separam. Tenho sessenta e dois anos. Vi as poucas famílias que restam do Império se degradarem com alianças menores. Como o meu mano que se casou com essa garça! Sei que é esse o destino da minha gente. Mas resisto é me opondo às relações fáceis e equívocas da sociedade moderna.
ABELARDO I — Me diga uma coisa, D. Poloca, se não fosse esse avacalhamento, permita-me a expressão... É de Flaubert!
D. POLOCA — Diga decadência. Soa melhor!
ABELARDO I — Bem! Se não fosse essa decadência. É realmente, é mais suave. Como é que vocês, permita a expressão, comiam...
D. POLOCA — Seu Abelardo, a gente não vive só de comida!
ABELARDO I — Está aí um pomo em que eu discordo profundamente de Vossa Majestade! Não podemos mais nos entender. A senhora vive de aragens... Eu de bifes.
D. POLOCA — O senhor é um burguês! Eu uma fidalga que teve a ventura de beijar as mãos de Sua Alteza a Princesa Isabel, ouviu?
ABELARDO I — Mas me diga uma coisa só, D. Polaquinha, perdão, D. Poloquinha. Em sua vida toda, tão cheia de nobreza, nunca amou um plebeu?...
D. POLOCA (Graciosa.) — Em segredo. Mas nunca em público como essa desfrutável que Deus me deu por cunhada!
MAIS HELOÍSA E JOANA.
HELOÍSA — Outro flerte! Ontem era a mamãe! Hoje tia Poloca. Quantos chifres você me põe por hora, Abelardo?
ABELARDO I — É em família. (Sentam-se rindo.) Não conta!
HELOÍSA — Contanto que você não me engane com o Totó!
JOÃO — O Totó é a minha diferença. Já está dando em cima do Americano! Basta a gente inventar alguém, lá vem ele! — Eu sou uma fracassada!
ABELARDO I — Coitado! Não leva vantagem... Está de asa partida!
JOÃO — Da outra vez também, lá em São Paulo, ele tinha brigado com o Godofredo. Ficou doente de tristeza! E mesmo assim me tomou o Miguelão! Bandido!
ABELARDO I — Mas o Americano que eu saiba aprecia o tipo másculo de Heloísa. Mister Jones é lésbico!
JOÃO — O Americano gosta do chofer. Felizmente! Olha quem vem aí... O Coronel.
HELOÍSA — Papai!
JOÃO — Parece o Clark Gable!
D. POLOCA — Meu irmão está remoçando com essas roupas de carnaval!
MAIS BELARMINO.
BELARMINO — Continuo sempre a apreciar a paisagem que se descortina desta ilha encantada. Uma verdadeira ilha paradisíaca. Aliás, o Rio de Janeiro talvez seja mesmo a mais bela cidade do mundo! Deve ser! Que baía. A mais bela baía do mundo! Nem Constantinopla, nem Nápoles, nem Lisboa!
ABELARDO I — De fato, Coronel.
BELARMINO — Lá em cima, o Corcovado com o Cristo de braços abertos. Consola-me ver o Rio de Janeiro aos pés da cruz! O Brasil é mesmo uma terra abençoada. Temos até um cardeal. Só nos falta um Banco Hipotecário!
ABELARDO I — Se bem que, na minha opinião, o Cristo devia estar um pouco mais perto de nós. Para controlar. Ouvir as nossas queixas. Assim ele fica muito longe... lá em cima...
HELOÍSA — Onde então Abelardo?
JOÃO — Onde?
ABELARDO I — Num sítio pitoresco, cá embaixo. E próximo. Assim, no Saco de São Francisco...
BELARMINO — Muito bem pensado! No Saco de São Francisco. E junto a ele um Banco Hipotecário.
ABELARDO I — Para quê? Não temos mais nada que hipotecar...
BELARMINO — É verdade que já estamos muito endividados...
ABELARDO I — De tanga... Coronel. Como na época da descoberta...
BELARMINO — Mas me diga uma coisa, Seu Abelardo, porque é que não pagamos as nossas dívidas com café. Temos dívidas. E queimamos café. Parece haver aí um mistério! Não acha?
ABELARDO I — De fato, roeu futuro sogro! Café é ouro. Ouro-negro! Estamos devendo e queimando ouro! Vou perguntar a Mister Jones... Estamos no fim. Na caveira.
BELARMINO — Um Banco Hipotecário, meu futuro genro, resolveria a crise. Mas era preciso ser um banco fone...
ABELARDO I — Um banco americano... ou inglês...
BELARMINO — Perfeitamente. Depois que o Império soçobrou nas mãos inábeis dos ituanos, precisamos de capital estrangeiro. Empréstimos...
ABELARDO I — E emissões...
BELARMINO — Emissões também. Não sou contra as emissões, Senhor Abelardo! Mas sabe do que precisa o povo, de tranqüilidade para trabalhar. Evidentemente. Dêem-lhe tranqüilidade e um Banco Hipotecário e verão os resultados...
ABELARDO I — Os próprios bancos nacionais podiam se transformar... A carteira hipotecária de qualquer deles!
BELARMINO — Estão arruinados, meu amigo! Arruinados! Não agüentam os fregueses antigos. Os homens honrados não arranjam lá um níquel! Não fosse a sua nobreza invulgar, tirando-me dos apuros em que estava, com aquele empréstimo... feito com garantias puramente morais! (Puxa um enorme lenço vermelho e enxuga os olhos e a barba.)
HELOÍSA — Ora Papai!
ABELARDO I — Por quem é, (Consternação.)
HELOÍSA — Papai...
BELARMINO — Minha filha, quando te casares, quero que rezes. E sejas a mãe dos pobres, a protetora dos desvalidos...
HELOÍSA — Prometo papai! Onde vai agora?
BELARMINO — Andar, minha filha!
D. POLOCA — Andar, andar é a vida a bordo! Este verso é de D. Pedro II!
ABELARDO I — É, é! Estamos a bordo.
BELARMINO (Retirando-se declamatório.) — Que fazem os homens novos? Que fazem os homens novos!
MENOS BELARMINO.
D. POLOCA — Os homens novos são como o senhor... um ateu!
um pedreiro livre, ouviu? E esse inglês... do chofer!
ABELARDO I — Que fim levou o Americano?
JOÃO — Decerto caiu dentro do copo de uísque!
ABELARDO I — Vou salvá-lo. Até já! (Sai pela direita.)
MENOS ABELARDO.
HELOÍSA — Tia Poloca está de bossa, hoje!
D. POLOCA — Eu não digo mais, porque vivo do pão alheio. Mas, no meu tempo, se escolhia. A gente não se casava com um aventureiro só porque é rico e foi aos Estados Unidos.
JOÃO — Por isso é que a senhora é virgem até hoje!
HELOÍSA — Com sessenta e três anos!
JOÃO — Já fez sessenta e nove!
D. POLOCA — Menina! Eu chamo teu pai! Vai ver coisas inocentes, anda! Vai ver o pôr-do-sol! Vai folhear o álbum de fotografias da família que eu trouxe! Quem sabe se os retratos dos avós te dão um pouco de vergonha! Vai ver o Perdigoto que chegou todo de soldado. Magnífico!
JOÃO — Aquele fascista indecente!
D. POLOCA — É o único que presta na família!
HELOÍSA — Não amola titia. Anda! Bestinha!
JOÃO — Eu tenho culpa dela ser cabeçuda?
D. POLOCA — No meu tempo, as meninas eram recatadas. Iam às novenas. Rezavam o terço. Hoje é o diabo quem manda!
JOÃO — O diabo é o homem mais encantador do mundo. O Homem da Vela... de Heloísa.
HELOÍSA — O Rei da Vela. — Me dá um cigarro, tia.
JOÃO — Não quero saber. A vela dele é que nos salvou.
D. POLOCA (Fuma com Heloísa.) — Eu não gosto desse homem não. Não teme Deus. É capaz de não querer casar no religioso... Mas o Perdigoto há de obrigá-lo. Este sim é um sobrinho que vale a pena! Me ensinou a tragar.
HELOÍSA — Casa! Ele está mudando. Me disse hoje que casa no religioso também. O cardeal virá à ilha... É uma honra! Um acontecimento!
D. POLOCA — Bem. Mas ele não tem família.
JOÃO — Nós temos demais. Eu não sei de nada, se não fosse ele... Depois que o Totó me tomou o Miguelão!
D. POLOCA — Aquele turco indecente!
JOÃO — Muito bom casamento. Palácio na Avenida Paulista! Barata! Nota!
D. POLOCA — Mas é um assassino!
HELOÍSA — É sim João! Matou o irmão com dezoito tacadas...
JOÃO — Mas foi absolvido pelo júri. Privação de sentidos.
HELOÍSA — E de inteligência...
JOÃO — Estado normal. Mas se o Totó não aparecesse ele caía. Ia me dar uma vida daqui! O Totó é um bandido! Me tomou o turco!
HELOÍSA — Esses anfíbios!
JOÃO — São uns miseráveis! Se não fosse o meu rei estava eu ainda gastando o meu francês de Sion nos apartamentos e nos hotéis. E rolando de barata, fazendo força contra as midinettes... Umas safadinhas... à-toa...
HELOÍSA — Encontrei a Mag na Avenida, num luxo. Quem diria? Aquela chapeleirinha da Rua da Boa Vista. Um vestido roxo-batata! Alucinante!
D. POLOCA — D. Etelvina escreveu?
HELOÍSA — Telegrafou. Vem com os convidados amanhã. Vem esfriar! Aquela romântica. Enfim, Abelardo quer gente de raça...
D. POLOCA — As rainhas relações são sempre melhores que as suas...
JOÃO — Outra virgem! Essa é a tal que viaja com a radiografia dos intestinos, procurando celebridades médicas para, consultar!
HELOÍSA — É sim...
JOÃO (Roendo a unha do polegar.) — Mademoiselle Tubagem!
HELOÍSA — Dona Léa vem também amanhã... Madame La Barone de Machadô!
D. POLOCA — Aquela polaca aqui! Cinzas!
JOÃO — Polaca não, titia, po-lo-ne-sa! Muito distinta! O Décio foi vítima da própria ignorância em geografia. Casou com ela errado.
HELOÍSA — Como é isso João?
JOÃO — Nesse tempo, essas senhoras eram todas francesas. Ele casou-se, pensando que era uma francesa de Paris. Mas ela não conhecia nem Marselha!
HELOÍSA — A Migdal tem outros portos! Mas o essencial é que ela hoje é um pilar da sociedade. Uma fílantropa. Vai à missa todo dia...
JOÃO — Tem chelpa! (Começa a roer furiosamente a unha do polegar.)
HELOÍSA — E da Convenção Eleitoral Feminina... Capaz de ser eleita deputada pelo partido católico...
D. POLOCA — João, não me irrites com essa unha. (Pega-lhe no braço.)
JOÃO — Deixa! Ui!
MAIS ABELARDO E O AMERICANO.
ABELARDO I — Que luta romana é essa?
JOÃO (Debatendo-se.) — É essa cabeçuda dessa titia, que não quer deixar eu ter nem um vício...
D. POLOCA — Cala a boca! No meu tempo, as meninas só falavam depois dos dezoito anos!
JOÃO — Uma ova. Eu sou o João dos Divãs. Não é Mister John? John and John! Marca nova de uísque.
O BANQUEIRO — Yes, darling! Glorious day!
ABELARDO I — Mas você gosta mesmo de roer unha?
JOÃO (Pulando, deslumbrada.) Uhm! Uma maravilha! (Continua a roer.)
D. POLOCA — Ele chega a deixar crescer a unha, para depois passar horas roendo...
ABELARDO I — Eu conheço uma que começou assim e acabou mastigando um balaústre!
JOÃO (Histérica.) — Deve ser divino! Ter gosto de unha! Vou experimentar!
HELOÍSA (Festejando o braço do Banqueiro.) — Então, Jones, como vão os negócios de Abelardo?
O BANQUEIRO — Finanças domina mundo. Abelardo, tem cheiro... Vai dar salto...
ABELARDO I — No abismo...
HELOÍSA — Dos meus braços! Diga uma coisa, Jones, por que é que o Brasil não paga as dívidas com o café que está queimando?
O AMERICANO — No Brasil precisa aviões... Metralhatrices... Muitos...
HELOÍSA — Mas para quê?
O AMERICANO — Trocar por café... Oh! Good business! Shut up!
ABELARDO I — É verdade! A guerra! Precisamos nos armar para a guerra...
HELOÍSA — Mas contra quem?
ABELARDO I — Contra qualquer pessoa! Qualquer guerra. Externa ou interna. É preciso dar emprego aos desocupados. Distrair o povo. E trocar café pelos armamentos que estão sobrando lá fora. As sobras da corrida armamentista. Você não vê logo? Ou então contra a Rússia! A Rússia está aporrinhando o mundo!
JOÃO (Liga o rádio. Uma valsa de Strauss amaria o ambiente.) — Papagaio! Toda vida Strauss! Ora! (Vai ligar a outra estação. O rádio guincha. Abelardo intervém.)
ABELARDO I — Não. Deixe Strauss! É o adultério! A voz mais pura do adultério... Escutem! (Liga o rádio.)
HELOÍSA — A grande guerra acabou com esses refúgios...
JOÃO — Prefiro um foxe...
O BANQUEIRO — Uma fox danz. Vamos Valz é triste!
JOÃO — Alô Jones! (Muda a estação e ao som de um foxe sai grudada no banqueiro.) Até à volta. Vou ver o pico do Itatiaia.
O AMERICANO (Rindo.) — Everest! Everest!
MENOS O AMERICANO E JOÃO.
D. POLOCA (Escandalizada.) Menina à-toa! Garota da crise! (Silêncio.) Vou me vestir para o banho de mar. Me refrescar desses calores! Heloísa, você vem... (Sai.)
HELOÍSA — Vou já, titia...
MENOS D. POLOCA.
Ouvem-se gritos ao fundo. Totó Fruta-do-Conde aparece na escada. Não traz nada nas mãos.
MAIS TOTÓ.
ABELARDO I — Que foi?
HELOÍSA — Totó... Que aconteceu?
TOTÓ — Um peixe enorme. Me tirou o anzol, os bombons. Levou tudo... Deve ter sido um tubarão.
ABELARDO I — Não. Decerto foi um peixe-espada. Como você ficou emocionado! Que palpitações...
TOTÓ — Decerto!
ABELARDO I — Pensei que você já estivesse habituado com essas pescarias...
HELOÍSA — Espera. Venho já. (Sai pela esquerda.) Vou me vestir.
MENOS HELOÍSA.
TOTÓ (Atira-se a uma cadeira.) — Eu pesco incessantemente há três dias. Por desgostos, Seu Abelardo!
ABELARDO I — Asa quebrada...
TOTÓ — Veja só! O Godofredo! Me misturar!
ABELARDO I — Isso é da vida, você se confortará, esquecerá!
TOTÓ — Nunca! Não posso esquecer.
ABELARDO I — Ora, o tempo é o grande remédio...
TOTÓ — Inútil. Foi um caso muito sério. Depois de tamanha dedicação minha! Três anos! Foi muito sério!
ABELARDO I — Assaz sério! Mas tudo passa. Tout passe, tout casse...
TOTÓ — Se não fosse aquele detalhe! Imagine, eu disse ao Godofredo: Você pode me trair com qualquer mulher. Qualquer, heim? Mas com aquela não admito! E foi justamente com ela! Tenho provas!
ABELARDO I — Bem. Mas a natureza está cheia de imperativos...
TOTÓ — E onde fica a educação, Seu Abelardo? Onde ficam as convenções, os preconceitos sociais, as diferenças de origem e de classe... Tudo isso que torna o mundo delicioso. (Geme.) Me trair com uma mulher do Mangue!
ABELARDO I — Do Mangue?
TOTÓ — Do Mangue, sim. Foi um cataclisma. Sou uma fracassada! (Levanta-se.) Os peixes me assaltam, o mar me enerva, a paisagem me amorfina. Vou para o meu quarto... sim? (Sai.)
MENOS TOTÓ.
ABELARDO I — Vai... Ofélia... Entra para um convento! (Fecha o rádio.) Agora é o outro que chegou na lancha. O pau-d’água. Vem buscar dinheiro. Mais dinheiro! Passei a vida arrancando osso, pele e sangue de meio mundo para ser explorado agora... por um fascista... colonial!
ABELARDO E PERDIGOTO.
Perdigoto entra, choca as botas e faz uma saldação militar cabalística. Abelardo senta-se sem responder.
PERDIGOTO — Glória! ABELARDO I — Que quer comigo?
PERDIGOTO (Sentando-se a cavalo numa cadeira. Tira um cigarro. Oferece. Fuma.) — Propor-lhe um negócio...
ABELARDO I — Mais um? Não conhece outro endereço?
PERDIGOTO — É uma transação que o interessa...
Silêncio.
ABELARDO I — O senhor é um crápula!
PERDIGOTO — Quem é o senhor para me dizer isso?
ABELARDO I — Um homem que matou a fome da sua família! Antes mesmo de entrar nela!
PERDIGOTO — Cão!
ABELARDO I — Insulta-me?
PERDIGOTO — Estou habituado a isso! Na fazenda ainda uso o chicote...
ABELARDO I — Mas não comigo, sabe? Insulta e maltrata os que trabalham... Os que lhe deram as belas roupas com que perde rios de dinheiro na Hípica e no Automóvel Clube... Felizmente isso acabou, meu amigo...
PERDIGOTO (Cínico.) — Não jogo mais!
ABELARDO I — Porque não tem dinheiro. Agora bebe. Sei que a fazenda se desorganizou durante uma semana toda! Porque o senhor que a administra em nome de seu pai foi tomar pifões de 24 horas com o administrador na Casa Grande. Foi retirado semivivo de uma forma de vômito. Sabe, um dia os colonos hão de levantar-lhe uma estátua de vômito, depois de tê-lo enforcado...
PERDIGOTO (Calmo.) — Irão depois às cidades e à capital... levantar estátuas idênticas aos usurários.
ABELARDO I — Miserável!
PERDIGOTO — Ladrão!
ABELARDO I — Diga o que quer!
Silêncio.
PERDIGOTO — Tenho notado lá e em algumas propriedades vizinhas um descontentamento crescente entre os colonos. Eles estão ficando incontentáveis.
ABELARDO I — Naturalmente... Sempre foram incontentáveis...
PERDIGOTO — Estão ficando insolentes, até desaforados. Ora, só há um remédio. É preciso castigar e meter medo. Eu tenho velhos amigos, quase todos desocupados... Gente disposta... Que sabe brigar...
ABELARDO I — Já sei! A escória notâmbula de São Paulo, os deporta de bar, os faróis de clube de jogo, os gigolôs de lupanar...
PERDIGOTO — Todos pertencentes a excelentes famílias...
ABELARDO I — Como você!
PERDIGOTO — Tenho um projeto. Dar-lhes ocupação. Aproveitá-los.
ABELARDO I — Que ocupação pode ter essa ralé?
PERDIGOTO — Uma camisa de cor basta! Armas, munições e...
ABELARDO I — Dinheiro!
PERDIGOTO — Fora de brincadeira. A situação obriga a isso. Organizemos uma milícia patriótica. Que acha? Nos instalaremos provisoriamente na Casa central. Combinaremos com os outros fazendeiros. Arrolaremos gente, a capangada está sempre pronta... Será o nosso quartel-general. E se a colônia der um pio...
ABELARDO I — Será o massacre... Processos conhecidos!
PERDIGOTO — Claro. Os corvos engordarão! E a paz voltará de novo sobre a fazenda antiga!
ABELARDO I (Depois de um silêncio.) — Quanto quer?
PERDIGOTO — Dez contos!
ABELARDO I — Sei que vai jogar esse dinheiro. Tentar uma última parada. Parasita! (Reflete.) Mas sua idéia não é má. Não deve ser sua. Aliás é uma cópia do que está se fazendo nos países capitalistas em desespero! (Prepara um cheque.) Pronto! Se dentro de uma semana não estiver organizada a milícia, ponho-o na cadeia!
PERDIGOTO — Por ter sido seu amigo?
ABELARDO I — Não, porque falsificou minha assinatura numa letra de treze contos que foi descontada por Pereira & Irmão. Desmoralizando-me com essa quantia ridícula! Mas já tomei providências.
PERDIGOTO — Sabia isso também?
ABELARDO I — Quer que lhe dê mais detalhes de sua vida?
PERDIGOTO (Fazendo alusão ao cheque que mostra ao sair.) — Não! Por hoje basta.
MENOS PERDIGOTO.
ABELARDO I — Crápulas! Sujos! Um é o Totó Fruta-do-Conde! O outro, este bêbedo perigoso. Virou fascista agora. Minha cunhada veio sentar de maillot no meu colo para eu coçar-lhe as nádegas... com cheques naturalmente. A sogra caída... A outra velha... E eu é que devo me sentir honradíssimo... por entrar numa família digna, uma família única.
MAIS HELOÍSA.
HELOÍSA (Entra em maiô.) — Você não vai ao banho? Estão todos prontos.
ABELARDO I — Não vou! Estou com um pouco de dor de cabeça. Prefiro repousar. Leve esse Americano duma figa... Minha cara, eu estou vendo que peguei no duro, no batente, durante dez anos, para fazer uma porção de piratas jogarem ioiô!
HELOÍSA — Estás arrependido? Não te trago vantagens sociais? físicas? Políticas... bancárias...
ABELARDO I — Mas que às vezes, de repente, perco a confiança. É como se o chão me faltasse. Sei que as tuas relações são boas. Amanhã teremos um jantar de congraçamento sob as estrelas do pavilhão yankee. Até o mais degenerado dos teus irmãos me será útil.
HELOÍSA — O Frutinha?
ABELARDO I — Por enquanto o outro. O ébrio. Vai fundar a primeira milícia fascista rural de São Paulo. Quem vai se regalar é o tal Cristiano de Bensaúde... o escritor... você sabe. Ele vem amanhã...
HELOÍSA — O tal que você chamava de sociólogo angélico, ia mandar fazer um samba para ele O pirata jejuador?
ABELARDO I (Rindo.) — É. A gente nos momentos difíceis é obrigado a fazer concessões. Depois o Americano quer união, das confissões religiosas, dos partidos... É preciso justificar, perante o olhar desconfiado do povo, os ócios de uma classe. Para isso nada como a doutrina cristã...
HELOÍSA — Hein? Você já está assim?
ABELARDO I — O catolicismo declara que esta vida é um simples trânsito. De modo que os que passaram mal, trabalhando para os outros, devem se resignar. Comerão no céu...
HELOÍSA — E os outros?
ABELARDO I — Os outros não precisam nem acreditar. Podem até adotar o cepticismo ioiô. A vida é um eterno ir e vir... ioiô...
HELOÍSA — E quando enrosca?
ABELARDO I — Aí apela-se para Schopenhauer. E imediatamente adota-se a filosofia do tiro no ouvido... Deve doer, não? o mundo então é uma miséria. Como Deus, não existe mais. Só há um remédio. O salto no Nirvana.
HELOÍSA — Por isso é que você se aniquilou em mim
ABELARDO I — De fato, a minha vida enroscou na sua, Heloísa. Num momento grave, em que é preciso lutar e vencer. Sem piedade. De uma maneira fascista mesmo. Vou me aliar ao Perdigoto e ao Bensaúde. Eles têm utilidade.
HELOÍSA — Você disse que aqui isso não seria possível.
ABELARDO I — Tenho estudado melhor. Somos parte de um todo ameaçado — o mundo capitalista. Se os banqueiros imperialistas quiserem... Você sabe, há um momento em que a burguesia abandona a sua velha máscara liberal. Declara-se cansada de carregar nos ombros os ideais de justiça da humanidade, as conquistas da civilização e outras besteiras! Organiza-se como classe. Policialmente. Esse momento já soou na Itália e implanta-se pouco a pouco nos países onde o proletariado é fraco ou dividido...
HELOÍSA — Então vou já brincar de jacaré com o Americano.
ABELARDO I — Vai! Ele é Deus Nosso Senhor do Arame... Brinca, meu bem.
Heloísa sai pela esquerda. Atrás dela, chamando-a, aparece, pela direita, em maiô centenário, que lhe cobre as canelas, D. Polaca.
MENOS HELOÍSA, MAIS D. POLOCA.
D. POLOCA — Heloísa! Heloísa!
ABELARDO I (Barrando-lhe o caminho.) — De novo a sós! Sabe! Respeito-a porque a senhora é o passado puro! Que não relaxa! O cerne! O cerne!
D.POLOCA (Lisonjeada.) — Chaleira!
ABELARDO I (Depois de um silêncio.) Diga, tia Coisa! Diga-me seriamente se a senhora tivesse um milhão de dólares o que faria?
D. POLOCA — Ora! Fabulista!
ABELARDO I — Diga. Eu preciso saber. Eu quero saber! Por exemplo, se eu estourasse os miolos e lhe deixasse tudo o que tenho...
D. POLOCA — Quer me fazer de idiota? Não faz não!
ABELARDO I — Não. Quero mesmo saber. Diga. Qual é o seu grande ideal? O que faria se recebesse um milhão?
D. POLOCA — Iria a Petrópolis.
ABELARDO I (Ajoelhando-se.) — Deixe-lhe beijar os pés! Santinha! O maiô pelo menos! (Levanta-se.) Pois olhe, há de ser comigo. Eu lhe dou uma viagem a Petrópolis! Tomaremos nós dois sozinhos a lancha. Sulcaremos a baía. Jantaremos no Rio num grande restaurante. Mas à noite... À noite...
D. POLOCA — Uma noite de amor! Nesta idade!
ABELARDO I — A primeira!... Diga que aceita...
D. POLOCA — Olhe que eu não sou de ferro!
ABELARDO I — Vou mandar preparar a lancha... E uns bolinhos.
D. POLOCA — Uns pés-de-moleque! Aba-fa!
ABELARDO I — Abafa (Saindo pela direita. Atira um beijo... dois...) Ao luar! Esta noite!